ESCRITORES

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Flores Artificiais - Luiz Ruffato

Luiz Ruffato - Flores Artificiais
O “buquê de flores artificiais” que Luiz Ruffato nos oferece em seu romance é um presente que, pelo próprio fato de não ser natural, causa desassossego e perturbação no leitor que recebe a surpresa diante da porta de seus olhos. Essas flores artificiais foram colhidas, segundo o autor, no campo dos relatos que um seu conterrâneo – Dório Finetto, lhe envia sob forma de cartas, talvez sem muito acreditar que, algum dia, suas “Viagens à terra alheia” pudessem vir a ser realmente publicadas em livro. “Dou inteira liberdade para o que decidir” – diz Finetto, na carta de abertura – “Até mesmo para simplesmente jogar tudo no lixo” (p. 14). Ao que Ruffato esclarece: “Talvez por sermos conterrâneos, e contraparentes, acabei aceitando o inusitado encargo.” p. 10).[...] 
Em Flores Artificiais são oito relatos, reunidos cada qual sob um título particular, sendo justamente “Uma história inverossímil” o primeiro deles. Trata-se da biografia de Bobby, um matador de ratos – quase indigente – que Finetto, quando ainda estudante, encontra nas ruas de Juiz de Fora durante um inverno e com quem acaba mantendo conversas com certa frequência. [...]
Cada personagem dos relatos tem uma história trágica a contar. Isolados em território estrangeiro ou eternos viajantes (é o caso do próprio Finetto), as lembranças de suas dores são o próprio caminho que repisam com insistência. Pela leitura das histórias, diríamos que a dor, e nenhuma outra, é a pátria universal da humanidade: guerras, ambições, calúnias, miséria, traições e mesmo a própria beleza são o solo agreste em que caminham os protagonistas. Sempre deslocadas no mundo, sempre apartadas de sua terra natal, ou em busca de algum lugar para finalmente marcarem o fim de sua amarga existência, cada voz ressoa como lamento e incompreensão da vida. Mesmo a história de Finetto parece um eterno suplício: ele sente o tempo que passa e a incompletude de sua vida sem família, sem filhos, sem esposa ou, como ele mesmo registra diversas vezes, sem pessoa alguma que lamente sua morte. É interessante notar, entretanto, o lado cômico de algumas passagens, apesar do tom trágico. Muitas vezes, o riso surpreende através de um chiste linguístico, quando uma personagem confunde palavras e quer pegar uma cerveja no frigorífico – em vez de frigobar, ou quando, em francês (idioma que aparece seguidas vezes ao longo do livro), há algum trocadilho envolvendo palavras muito semelhantes, mas que, em sua diferença, acabam modificando toda uma frase. Mas a comicidade surpreende mais naquilo que é próprio das piadas e do riso: o lado sádico de quem ri e o humor negro das anedotas. Um excelente exemplo é a segunda história do livro, “Uma tarde em Havana”, em que Finetto inicia conversa com Nadia, uma moça que lhe revela ser prostituta, ainda que esteja bastante inquieta com o fato de poder ser descoberta. Suas atitudes são imaturas e denunciam a constante necessidade de valorização da beleza física. Nadia fala muito em casamento e critica os espanhóis e italianos, que “só querem jarana” (farra, bagunça). Ela e Finetto apreciam as ruas da cidade em um passeio que dura até o anoitecer e, a um dado momento, Nadia o convida para entrar em uma casa no subúrbio, onde se encontram o homem que explora seu trabalho e a dona do local. Surpreso e deprimido pela condição e o estado físico da moça – “Ela jogou-se no colchão, pretensamente lasciva, a pele magoada, marcas vermelhas e roxas de outros encontros” (p. 99) –, Finetto lhe dá todo o dinheiro de que dispunha e retorna ao hotel de onde haviam partido aquela tarde. O relato acaba com uma reflexão do narrador sobre sua própria vida: “Quando, sem fôlego, voltei à tona, era apenas destroços, um homem que avançava célere para os sessenta anos e sabia que não ocupava o pensamento de nenhuma pessoa em lugar algum do mundo” (p. 100). Esse desfecho, embora doloroso, faz-nos refletir sobre quem, afinal, é mais infeliz e está mais entregue ao acaso. A moça é jovem (tem 24 anos), é prostituta, mas procura casamento com um homem que a ame, Finetto é velho e tem a certeza de que morrerá sem ninguém para lamentar sua perda. Situação quase anedótica acontece também em “A perna”, em que Anka, a proprietária de um hotel da cidade de Nordersted (Alemanha), conta como ficara manca de uma perna e como fora obrigada pela mãe a abandonar a muleta e disfarçar o defeito: por volta dos sete ou oito anos, brincava sozinha à beira de um riacho quando a muleta, por descuido, cai na água e é levada pela correnteza. Anka caminha trôpega em direção a casa, enquanto inventa uma história para convencer a mãe de que não fora culpada do incidente: “Ao chegar, contei, toda séria, que Jesus havia aparecido para mim perto do bosque, mandando que jogasse fora a muleta, porque se tivesse fé ficaria sarada” (p. 107). A mãe lhe dá um violento tapa no rosto e a espanca com uma tala de couro, exigindo que, dali para a frente, Anka ande direito, pois a considerava curada. Esses pequenos ou médios relatos, ambientados onde quer que seja, tratando de não importa qual personagem, encerram docemente a lição do sofrimento humano, em histórias que se repetirão ininterruptamente, a perder de vista no horizonte do tempo. A epopeia simplória das vidas de personagens expatriadas, ou eternos viajantes que não têm para onde regressar, é transplantada das palavras que saem de suas bocas, integram as cartas de Finetto e, finalmente, transmutam-se nas flores artificiais de Luiz Ruffato.
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Flores artificiais, de Luiz Ruffato por Gabriel Villamil Martins - Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Letras - UFRGS, em:

Luiz Ruffato fala com Rodrigo Simon sobre seu livro, Flores artificiais (Companhia das Letras, 2014). Em seu nono romance, o premiado autor volta a tratar da questão do desenraizamento, tema que percorre sua produção, de maneira mais ou menos evidente, desde a estreia com Eles Eram Muito Cavalos (Boitempo, 2001), que está em sua 11ª edição e venceu os prêmios APCA e Machado de Assis. Ruffato é também autor de Estive em Lisboa e lembrei de você (Companhia das Letras, 2009) e De mim já nem se lembra (Moderna, 2007), além da pentalogia Inferno Provisório (Record): Mamma, son tanto Felice (2005), O mundo inimigo (2005), Vista parcial da noite (2006), O livro das impossibilidades (2008) e Domingos sem Deus (2011). Além dos nove romances, Ruffato também publicou dois livros de contos, dois de poesia e um ensaio.

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