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Parabólicas e Mandacarus - Artimanhas do Jegue Tinhoso - Conto II


ARTIMANHAS DO JEGUE TINHOSO  - CONTO II




Transcorria janeiro em dia ensolarado característico da época, antes das oito da manhã o navio Benjamim Guimarães, primeira embarcação a se aproximar, atracou em Riopara trazendo uma encomenda para Justino Jatobá, então, o prefeito.

Após descarregamento dos caixotes contendo uma antena parabólica e acessórios, o comandante do navio, sujeito corpulento, barba branca, de mãos enormes, feição acaboclada num rosto que exibia sinais de severidade logo desmentida por suas maneiras mansas, deu a conhecer às pessoas presentes aquilo que ele considerava a maior invenção tecnológica do século XX. O artefato que tiraria Riopara do atraso e do isolamento. A população da pequena vila iria se conectar ao resto do mundo logo que a antena fosse instalada e tivesse o foco direcionado para a vastidão da esfera celeste em busca de satélites.

Chiquinho do Jegue foi cedo ao porto esperar o navio, para em seguida, transportar a antena até a casa de Justino Jatobá no lombo de seu burrico, o jumento Tinhoso. Chiquinho puxava o asno com a certeza de que levava modernidade, novos padrões culturais, enfim: a civilização. Durante o caminho, seguido por uma multidão bastante diversificada, todo orgulhoso, ia anunciando a boa-nova quando, de súbito, o jegue cismou de empacar defronte ao adro da igreja matriz.

O transporte da parabólica teria acontecido dentro da normalidade não fosse a atitude inesperada do jegue que acabou transformando o traslado do equipamento num dos fatos mais insólitos já vividos pela população. No meio do trajeto, grande confusão se estabeleceu quando Tinhoso parou ao chegar diante da igreja. O beato João do Rosário, única pessoa em Riopara contrariada com a chegada da antena, antevendo não se sabe o quê, proferiu fanaticamente: “Esse troço é uma arte do capiroto, só vai trazer devassidão, lascívia e muita safadeza!”, e, colérico, ameaçou espancar o animal.

João do Rosário se irritou ainda mais quando um grupo de rapazes e as lascivas moças do bordel de Maria Xibiu Seco começaram a bater palmas para o animal, crentes em que o muar desejava que padre Jesuíno benzesse a parabólica. A atitude dos rapazes e moças enfureceu o beato, que bradou: “Tirem esse animal da calçada da Igreja! Aqui é local santificado, lugar de veneração e respeito a Deus.” Era como se o jegue Tinhoso carregasse nas costas todas as iniquidades, mazelas e obscenidades do mundo.

Chiquinho não se conformava. Gritava e assegurava que tinha o direito de ir e vir com seu jegue para onde bem quisesse. Isso encolerizou ainda mais o beato, que de posse de um porrete, atingiu as pernas do animal ameaçando aleijá-lo. O gesto intempestivo de João do Rosário revoltou todas as pessoas paradas nas cercanias da igreja. Às pressas, dois policiais plantonistas foram chamados para tentar resolver o impasse do jegue. Um dos soldados queria obrigar Chiquinho a tirar o bicho do local. Muito revoltado, Chiquinho disse: “Meu animal foi agredido! Exijo que esse maldito beato seja preso imediatamente”.

Para aumentar ainda mais a confusão, o impassível jegue começou a zurrar e se dirigir em direção às escadas de acesso à porta principal da igreja. A cidadezinha se quedou perplexa atraída por aquela celeuma. Formigava gente nas imediações do templo. Todo mundo ansiava pelo desfecho daquele acontecimento raro. Os policiais queriam que todos fossem embora, mudaram de ideia quando o endiabrado jumento, numa investida espetacular, resolveu soltar peidos, subir, mijar e cagar nas escadarias e invadir a igreja para susto e assombro daqueles que faziam suas orações. Foram grandes o rebuliço e o alarido geral; pessoas saíram porta a fora, desenfreadas, e uma senhora gritou: Valei-me! Nossa Senhora dos jumentos desembestados, livrai esse animal dos espíritos malignos que o atormentam.

 

- “Vai todo o mundo agora pra delegacia, inclusive o jegue”, – bradou o militar mais velho.

 

Na delegacia, após entrega da parabólica em domicílio de Justino Jatobá, mais um entrave surgiu na hora de apresentar o jegue ao delegado: Chiquinho empregou vários meios, fez de tudo, mas não conseguiu fazer o sestroso jumento subir a rampa de acesso ao pátio. Vigiado pelos policiais e populares, o animal acabou amarrado numa árvore em frente ao prédio. Um boletim de ocorrência por maus tratos contra animal foi lavrado e o jegue encaminhado para exames. Atestadas as lesões, obrigado a arcar com as custas e condenado a prestar serviços comunitários, meses depois, João do Rosário foi acusado de pedofilia; desta vez encarcerado, enlouqueceu, enforcou-se.

 

Um comentário:

Tânia Marques disse...

Obrigada pela sua presença em um dos meus blogs. Devido ao excesso de compromissos com a Filosofia da Diferença e com a arte, ando meio sem tempo de atualizá-los, mas prometo isso para logo, para as próximas férias. Visite também:
http://palavraseimagensposmodernas.blogspot.com
Adorei seus escritos! Seguiremos conversando! Beijos anarcoamigos.