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O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam

O título deste livro, sim, é longo. O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. Mas, certamente, não foi isso que levou os jurados do Prêmio Jabuti de Literatura 2013 a atribuir-lhe o título de melhor romance do ano.
Há um conjunto de elementos que poderão lançar a obra à categoria de clássico brasileiro, uma concatenação de ideias com certa originalidade.
O personagem central da história é um mendigo que vai redescobrindo sua vida ao contá-la a um interlocutor identificado somente como “senhor”. Em dado momento, o mendigo afirma: “Minha mendicância é voluntária: perdendo a amada perdi incontinenti o interesse por tudo-todos” (pg. 39). E então, o leitor começa a compreender esta estranha figura que carrega consigo um livro de adágios de Erasmo de Rotterdam, o qual sabe de cor, e o tempo todo cita estas frases, combinando e recombinando com seu discurso, que exala poesia e tragédia.
[...] 
E o mendigo vai relatando sua história, de dez anos na rua, embora não deixe as coisas exatamente claras, como se tudo pudesse ser apenas delírio. Basta que se observe seu vício:

Os maltrapilhos alcóolicos entregam-se à bebida; entreguei-me ao grafite: entro em êxtase quando sinto o cheiro dele saindo deste objeto de madeira para fixar-se em forma de N, nos espaços vazios dos muros desta metrópole apressurada. Meu ópio grafítico”. (pg. 28).
[...]
Numa combinação de amor, solidão e delírio, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam é um livro que realmente mereceu o prêmio recebido, muito embora um Jabuti de literatura ainda pareça pouco diante da amplitude da obra, um clássico contemporâneo.
Leia o texto integralmente, acessando:

"O título já pode produzir inquietação. Afinal que aquilo que supomos saber de um mendigo jamais incluiria que fosse culto, que soubesse quem foi Erasmo e muito menos que tivesse lido seus adágios sobre os quais, aliás, poucos sabem. O personagem criado por Evandro Affonso Ferreira inverte essa lógica nos dando o que pensar no instante em que a erudição de um homem se mede com seu próprio abandono e o abandono generalizado do mundo ao seu redor. O que sabemos, por meio desse homem com profundas cicatrizes interiores é que a miséria das ruas pertence a todos: “somos todos – cada um à sua maneira – fedentinosos e desvalidos e patéticos e constrangedores.” Que no fundo, de certo modo, todos pertencemos a este “grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas”.
Leia excelente resenha da filósofa e escritora Marcia Tiburi sobre a obra, acessando:
[revistacult.uol.com.br/home/o-novo-livro-de-evandro-affonso-erreira]

O escritor Evandro Affonso Ferreira fala sobre seus livros, entre os quais: "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam":


Saiba mais sobre a vida e obra de Evandro Affonso Ferreira, acessando:

A magistral trilogia de Antônio Torres: Essa terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha

A magistral trilogia de @AntônioTorres


Sobre Essa terra: 

Essa terra não é a história de uma terra, mas do seu produto humano.” - Leonor Bassères, Tribuna da Imprensa


Sobre o Cachorro e o lobo:

“Há magia na linguagem desse belo romance.” - César Leal, Diário de Pernambuco

“É a sua obra-prima.” - Ana Maria Machado, Jornal do Brasil


Sobre Pelo fundo da agulha :

“ Pelo fundo da agulha é um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.”- Ignácio de Loyola Brandão, Estado de S. Paulo

“Com Pelo fundo da agulha fecha-se o cerco da trilogia iniciada com Essa terra, de 1976, e seguida por O cachorro e o lobo, de 1997, marcando três tempos na obra de Antônio Torres e ainda três momentos distintos da história da ficção no país.” - Cláudia Nina, Revista Brasil / Brazil , Brown University




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Por cima do mar - Livro envolvente, relevante e de performance literária de alta qualidade


Com a publicação de “Por Cima do Mar”, a escritora brasileira Deborah Dornellas foi contemplada com o Prêmio Casa de las Américas 2019 como melhor romance brasileiro do ano.
Deborah Dornellas, escritora, jornalista e artista plástica, é uma carioca criada em Brasília que mora em São Paulo. Em 2001, concluiu o mestrado em História Cultural (UnB), com um trabalho sobre maracatu nação pernambucano, o que a levou para dentro do universo da cultura popular brasileira de matriz africana, de onde nunca mais saiu. Em 2012, publicou Triz, uma reunião de poemas. Integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro desde 2013 e participou de todas as publicações do grupo. Cruzou o Atlântico pela primeira vez em 2016, para ver Angola de perto e alimentar-se de histórias. 
O prêmio cubano é um dos maiores reconhecimentos literários e tem como objetivo contemplar as melhores publicações da América Latina. Com isso, o livro será publicado em espanhol com uma tiragem inicial de dez mil exemplares.
Composto por Isis Barra Costa, Luisa Geisler e José Luiz Passos, o grupo de jurados considerou que a obra “conta uma história envolvente e relevante para o contexto contemporâneo brasileiro e latino-americano, que aborda questões como o racismo, o sexismo e a desigualdade, com originalidade e profundidade através da vida de sua protagonista e das mulheres negras que a antecederam”.
A avaliação também considerou que “o livro é estruturalmente ousado, tanto por sua extensão quanto pelo longo período de tempo que abrange, sua originalidade também se expressa em propor diálogos entre o Brasil e Angola, entre candangos e escravos. As pequenas mudanças de linguagem da protagonista, que refletem seus movimentos geográficos através do Atlântico, revelam o cuidado adequado da narrativa histórica e uma performance literária de alta qualidade".
A narrativa de “Por Cima do Mar” conta a história de Lígia Vitalina. Negra e criada na periferia do Distrito Federal em uma família de poucos recursos, mãe empregada doméstica e pai candango operário, Lígia se torna professora da Universidade de Brasília. Um dia, a protagonista se apaixona por um angolano e decide se mudar para Benguela, em Angola. Na cidade, a personagem começa a escrever sobre a sua vida e constrói pontes entre passado, presente, infância, maturidade, África e Brasil.

Processo de criação:
De acordo com Deborah, a obra, que levou cinco anos para ser escrita, vem de um conto. “O romance foi nascendo aos poucos, em cenas esparsas, muito fragmentado. O que me deu trabalho não foi propriamente a escrita, mas a costura das cenas, a unidade de tom e ritmo. Fiz muita pesquisa para a narrativa, principalmente sobre episódios históricos de Brasília e Angola. A primeira versão ficou pronta apenas em 2017 e eu ainda passei um período criando e produzindo as ilustrações. Por cima do mar é meu primeiro romance e o primeiro livro que ilustro. E foi Lígia Vitalina quem me levou pela mão. Sem essa personagem, esse livro não existiria. O livro é dela”, explica.
E complementa falando sobre a importância do reconhecimento: “prêmios em geral são um reconhecimento ao trabalho que a gente fez e isso é muito bom, pois nos incentiva a continuar escrevendo. Um prêmio como o Casa de las Américas é ainda mais significativo por sua tradição e por ser outorgado por uma instituição cubana que trabalha a sério pela cultura e pela repercussão da literatura brasileira no exterior”.




Tangolomango - Ritual das paixões deste mundo

Tangolomango - Raimundo Carrero
"Um dos escritores mais premiados do país, o pernambucano Raimundo Carrero, de 68 anos, não parou de produzir nem na recuperação de um AVC, sofrido em outubro de 2010. Meses depois, já ditava à sua terapeuta um romance e, depois, passaria ele mesmo a escrever, com um dedo da mão direita. Tangolomango - Ritual das Paixões deste Mundo passaria por três tratamentos, modificando-se enquanto o autor recuperava movimentos e a articulação da fala.
A capa, da designer Hallina Beltrão, sugere o que encontraremos. Carrero é obcecado pela loucura, pelo sexo, pelo que Ariano Suassuna definiu como confrontação com o mal. A obra do pernambucano é, como acena Ariano, um confronto, ambíguo em suas mobilizações e desarmamentos, ora repudiando, ora fascinado pelo "maior de todos os mistérios". Antevemos tia Guilhermina, senhora mascarada, seios nus, arrebatada pelo gozo momesco. É ela que conduzirá a narrativa intrincada, oferecendo-nos mais um ponto de vista sobre a família retratada em romances anteriores do autor." Revista Língua Portuguesa - Edição 90
A seguir, trechos da entrevista concedida à Revista Língua Portuguesa na qual o escritor discorre sobre sua obra:

- O sexo e a loucura são temas quase indistintos nos seus textos recentes.
Sexo é loucura. Não há lucidez no sexo. O sexo é movido pelas forças interiores, pela psique, pela alma. Não há sexo movido pelo corpo. O corpo só movimenta. Sexo sem espírito não existe, há só gestos. Isso é o que mais me inquieta. Não o sexo pelo prazer comum, vulgar. Mas pelo desejo de se realizar plenamente. Tia Guilhermina fala do grande sexo que faz o homem ser grandioso na sua capacidade de reinventar o mundo com alegria. Daí a liberdade que só o carnaval permite. Atingir o ponto central que é não representar, mas ser. Sempre busco essas coisas na alma humana. Se não for assim não é possível fazer nada, só repetir os demais autores. E não quero repetir ninguém.

- Tangolomango é também sobre uma espera sem fim. Tia Guilhermina "esperaria horas, meses e anos, simplesmente porque não havia marcado com ninguém".
Ela se apaixona pelo que não existe. Vai a bares e espera por namorados que não existem. Como a gente, que passa a vida esperando pelo que não há, porque nós também não existimos. Inventamos a existência. É o encontro não marcado que nunca teremos. Não é possível encontrar algo que nos seja suficiente. Somos mentirosos, cínicos e pedantes. Eis o que me angustia enquanto escritor. Sou escritor por isso. Em O Amor não tem Bons Sentimentos, Matheus tenta o tempo todo convencer de que estuprou e matou a mãe e a irmã. E não matou ninguém. Só procura agredir aquele ser que ele não é. Se dissesse que é normal, não daria boa existência, assim como um homem normal não dá bom romance. 

- É como o narrador sugere: "O carnaval eterno já é um começo. E o cordão de isolamento era proteção que o sofrimento concede a todo ser vivo". 
Exato. Como o homem não se expõe, é protegido por um cordão de isolamento que é o seu sofrimento, sua angústia, sua dor. Esse cordão protege o homem contra a verdade do mundo. Se não existisse, o mundo seria uma loucura.

Para saber mais sobre a obra de Raimundo Carrero, acesse:

"Nada mais triste que o carnaval". Com essas palavras, o escritor pernambucano Raimundo Carrero reflete sobre seu mais novo livro Tangolomango - Ritual das paixões deste mundo, no Imagem da Palavra. Raimundo cria um romance que combina as festividades carnavalescas e a melancolia, em uma quebra dos clichês identitários nacionais. A partir de uma família ficcional corroída pelo incesto, o autor retrata aspectos de uma sociedade devastada. Parceiro de Ariano Suassuna no Movimento Armorial, Raimundo Carrero fala sobre a língua portuguesa, o sentimento sertanejo e sobre sua vida após ter sofrido um AVC.



Para saber mais sobre a obra de Raimundo Carrero, acesse:
[https://www.itaucultural.org.br/raimundo-carrero-escritores-leitores]



Cidade de Deus - Uma das maiores obras da Literatura Brasileira contemporânea

O romancista, roteirista e poeta Paulo Lins fala de seu livro Cidade de Deus e do sucesso da obra, que completou 20 anos em 2017. O autor explica a intenção prévia de escrever pensando, principalmente, em estudantes como público-alvo e buscando revelar e diminuir a violência nas favelas do Rio de Janeiro. Fala do susto ao perceber que o livro se tornava um “best-seller”, vendido em vários países, de quanto a obra mudou sua vida e de suas influências literárias no momento em que o publicou. Comenta também sobre o filme de Fernando Meirelles baseado em sua obra e o que mais o marcou nessa trajetória. Depoimento gravado durante o 10º Encontro Internacional Conexões Itaú Cultural, em novembro de 2017, na sede do Itaú Cultural, em São Paulo/SP.

"Eu acreditava que conhecia o apartheid social que existe no Brasil até ler o livro. Percebi que nós, da classe média, não somos capazes de enxergar o que está na nossa cara. Estado, leis, cidadania, polícia, educação, perspectiva e futuro são temáticas abstratas, mera fumaça quando vistos do outro lado do abismo. Cidade de Deus não fala apenas de uma questão brasileira e sim de uma questão global. De sociedades que se desenvolvem na periferia do mundo civilizado. Da riqueza opulenta do primeiro mundo, que não consegue mais enxergar o terceiro ou quarto mundo, do outro lado ou no fundo do abismo".

Leia mais sobre o autor na Enciclopédia Itaú Cultural: http://enciclopedia.itaucultural.org..... 
Outros vídeos com Paulo Lins: http://bit.ly/2iiA6uB




O escritor Paulo Lins cresceu na Cidade de Deus. A visão interna lhe permitiu escrever o livro sobre o local, que deu origem a um dos filmes brasileiros mais aclamados de todos os tempos.
Assista também ao vídeo no qual o ator Lázaro Ramos entrevista Paulo Lins no programa Espelho do Canal Brasil:
[canalbrasil.globo.com/programas/espelho/videos.html]

Análise da obra "Cidade de Deus", comentada pelo professor Leonardo Cassanho Forster, a partir de slides da professora de Literatura Eliana Werner:
[www.youtube.com/watch?v=ptOpnEq_CMM]

Parabólicas e Mandacarus - Artimanhas do Jegue Tinhoso - Conto II


ARTIMANHAS DO JEGUE TINHOSO  - CONTO II




Transcorria janeiro em dia ensolarado característico da época, antes das oito da manhã o navio Benjamim Guimarães, primeira embarcação a se aproximar, atracou em Riopara trazendo uma encomenda para Justino Jatobá, então, o prefeito.

Após descarregamento dos caixotes contendo uma antena parabólica e acessórios, o comandante do navio, sujeito corpulento, barba branca, de mãos enormes, feição acaboclada num rosto que exibia sinais de severidade logo desmentida por suas maneiras mansas, deu a conhecer às pessoas presentes aquilo que ele considerava a maior invenção tecnológica do século XX. O artefato que tiraria Riopara do atraso e do isolamento. A população da pequena vila iria se conectar ao resto do mundo logo que a antena fosse instalada e tivesse o foco direcionado para a vastidão da esfera celeste em busca de satélites.

Chiquinho do Jegue foi cedo ao porto esperar o navio, para em seguida, transportar a antena até a casa de Justino Jatobá no lombo de seu burrico, o jumento Tinhoso. Chiquinho puxava o asno com a certeza de que levava modernidade, novos padrões culturais, enfim: a civilização. Durante o caminho, seguido por uma multidão bastante diversificada, todo orgulhoso, ia anunciando a boa-nova quando, de súbito, o jegue cismou de empacar defronte ao adro da igreja matriz.

O transporte da parabólica teria acontecido dentro da normalidade não fosse a atitude inesperada do jegue que acabou transformando o traslado do equipamento num dos fatos mais insólitos já vividos pela população. No meio do trajeto, grande confusão se estabeleceu quando Tinhoso parou ao chegar diante da igreja. O beato João do Rosário, única pessoa em Riopara contrariada com a chegada da antena, antevendo não se sabe o quê, proferiu fanaticamente: “Esse troço é uma arte do capiroto, só vai trazer devassidão, lascívia e muita safadeza!”, e, colérico, ameaçou espancar o animal.

João do Rosário se irritou ainda mais quando um grupo de rapazes e as lascivas moças do bordel de Maria Xibiu Seco começaram a bater palmas para o animal, crentes em que o muar desejava que padre Jesuíno benzesse a parabólica. A atitude dos rapazes e moças enfureceu o beato, que bradou: “Tirem esse animal da calçada da Igreja! Aqui é local santificado, lugar de veneração e respeito a Deus.” Era como se o jegue Tinhoso carregasse nas costas todas as iniquidades, mazelas e obscenidades do mundo.

Chiquinho não se conformava. Gritava e assegurava que tinha o direito de ir e vir com seu jegue para onde bem quisesse. Isso encolerizou ainda mais o beato, que de posse de um porrete, atingiu as pernas do animal ameaçando aleijá-lo. O gesto intempestivo de João do Rosário revoltou todas as pessoas paradas nas cercanias da igreja. Às pressas, dois policiais plantonistas foram chamados para tentar resolver o impasse do jegue. Um dos soldados queria obrigar Chiquinho a tirar o bicho do local. Muito revoltado, Chiquinho disse: “Meu animal foi agredido! Exijo que esse maldito beato seja preso imediatamente”.

Para aumentar ainda mais a confusão, o impassível jegue começou a zurrar e se dirigir em direção às escadas de acesso à porta principal da igreja. A cidadezinha se quedou perplexa atraída por aquela celeuma. Formigava gente nas imediações do templo. Todo mundo ansiava pelo desfecho daquele acontecimento raro. Os policiais queriam que todos fossem embora, mudaram de ideia quando o endiabrado jumento, numa investida espetacular, resolveu soltar peidos, subir, mijar e cagar nas escadarias e invadir a igreja para susto e assombro daqueles que faziam suas orações. Foram grandes o rebuliço e o alarido geral; pessoas saíram porta a fora, desenfreadas, e uma senhora gritou: Valei-me! Nossa Senhora dos jumentos desembestados, livrai esse animal dos espíritos malignos que o atormentam.

 

- “Vai todo o mundo agora pra delegacia, inclusive o jegue”, – bradou o militar mais velho.

 

Na delegacia, após entrega da parabólica em domicílio de Justino Jatobá, mais um entrave surgiu na hora de apresentar o jegue ao delegado: Chiquinho empregou vários meios, fez de tudo, mas não conseguiu fazer o sestroso jumento subir a rampa de acesso ao pátio. Vigiado pelos policiais e populares, o animal acabou amarrado numa árvore em frente ao prédio. Um boletim de ocorrência por maus tratos contra animal foi lavrado e o jegue encaminhado para exames. Atestadas as lesões, obrigado a arcar com as custas e condenado a prestar serviços comunitários, meses depois, João do Rosário foi acusado de pedofilia; desta vez encarcerado, enlouqueceu, enforcou-se.

 

Uma visão crítica e bem-humorada do modo de vida no Brasil - André Sant'Anna

Em O Brasil é bom, com uma visão crítica e irônica, André Sant'Anna escreve 22 contos fazendo uma releitura pop da vida brasileira. 
"As narrativas que compõem o volume fazem uma instigante releitura de vozes que povoam nosso cotidiano, cheio de opiniões, não raro, marcadas pela repetição de estereótipos difundidos das mais diversas formas: programas jornalísticos ou humorísticos, canções, telenovela, comentários postados na web, como vemos em "Comentários na rede sobre tudo o que está acontecendo por aí", "Felicidade", "Amando uns aos outros". Com os ouvidos e olhos atentos, André seleciona elementos de um vasto repertório e os combina em textos que oscilam entre a fina ironia e a mais ferina sátira aos tempos em que vivemos, passando também por momentos em que a delicadeza se deixa surpreender de modo inusitado, como no conto "Só", do qual foi selecionado o trecho abaixo."
Por Susana Souto, em [Obra Aberta], Revista Língua Portuguesa, Edição - 110.

Para ler o texto completo, acesse:

Para ler excelente resenha sobre a obra, acesse:
[www.revistaamalgama.com.br/06/2014/o-brasil-e-bom-andre-santanna]

Para ler um trecho, acesse: [www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php]

Trecho do Conto - "Só"

A oração interrogativa 
estabelece um diálogo com o leitor e o convida a refletir sobre a centralidade do dinheiro, no mundo contemporâneo, valorizado mais do que saúde, paz, amor, nos votos de fim de ano, festa de grande valor simbólico.
"No último réveillon, quantas pessoas desejaram dinheiro para você? 
Você está só porque ninguém se interessa pelos seus problemas, pela sua solidãopelo seu dinheiro que você não tempela sua solidão intransponível, pelas injustiças que vivem acontecendo na sua vida, na vida.
Você está só porque a imagem de uma criança toda queimada, toda suja de lama numa maca cheia de moscas voando ao redor, é apenas uma imagem na televisão, patrocinada por um banco que finge ser seu amigo, finge estar à sua disposição no momento em que você mais precisar dele, aquele banco legal, aquele banco amigão.
Você está só porque tem dinheiro.
Você está só porque não tem dinheiro.
Você está só por causa do dinheiro.
Só dinheiro.
Só."





















(SANT'ANNA, André. O Brasil é bom. São Paulo: Cia. das Letras, 2014, p. 58)
Repetida exaustivamente, a afirmação "você está só" atua como espinha dorsal do conto, que aborda a incontornável solidão do homem contemporâneo. Ao mesmo tempo, reforça a proximidade entre o narrador anônimo e o "você", também indefinido, imagem do leitor a quem o narrador se dirige.
Ao longo desse parágrafo, aparece duas vezes repetida a palavra "solidão", uma delas, inclusive, qualificada pelo adjetivo "intransponível", o que a torna ainda mais dolorosa e inevitável.
Nesse trecho, o pronome possessivo "seu" não remete à posse, mas ao contrário, à ausência de posse, já que se trata, contraditoriamente, do "seu dinheiro que você não tem". 
 Inicialmente, a palavra "vida" está circunscrita ao indivíduo não nomeado a quem o narrador atribui "sua vida"; no entanto, no fim do período, amplia-se o seu significado e "vida" passa a englobar um sentido mais amplo e coletivo.
O discurso publicitário - que é também incorporado na repetição persuasiva da afirmação "você está só" - é aqui referido de modo explícito, quando o conto expõe os bastidores do mundo da notícia, patrocinado pelo banco, ironicamente, qualificado como "legal" e "amigão", que apenas "finge", verbo repetido duas vezes, se interessar pela vida dos clientes.
Nos parágrafos finais, a narrativa em prosa se aproxima da tessitura do poema. Mantém-se o uso da anáfora, com a repetição de "você está só", e variação apenas da segunda parte do sintagma, com pequenas variações: afirmação, no primeiro, negação no segundo e mudança do conectivo, no terceiro.
Apaga-se o pronome "você" e acentua-se a exclusividade do dinheiro como único elemento importante no mundo, na vida, "só dinheiro", enfatizando o processo de reificação, típico de uma sociedade de consumo. Por fim, numa espécie de degradação, apaga-se a palavra "dinheiro" e resta apenas "só", indicando a circularidade da narrativa. A solidão é uma espécie de círculo do qual não podemos escapar? - indagamos, entre tristes e esperançosos. 


O Inédito de Kafka - Mayrant Gallo

"O ato de ler está arraigado ao ser humano" Mayrant Gallo


Capas de livros de Mayrant Gallo

"Numa linguagem que vai do registro poético à observação realista, da recuperação da oralidade ao uso de imagens requintadas, “O Inédito de Kafka” coloca em cena um novo autor, que cria uma dissonância saudável, investindo contra a literatura neonaturalista que tem proliferado no país. Mayrant Gallo não acredita no real-real, visto apenas como um dos lados da moeda, e explora as tensões ocultas nas sombras do real". Miguel Sanches Neto

"Os contos surpreendem pela intensidade com que são formadas suas personagens, pelas histórias sempre à beira de uma tragédia, mesmo quando desenhem acontecimentos aparentemente banais. É um forte livro de contos, dos melhores que tenho lido ultimamente. Mas o mais surpreendente é a linguagem do Mayrant. Moderno, muito moderno mesmo, sem cair na facilidade do modernoso. Ele não surra nossa língua como a maioria acha que deva ser nossa língua literária. Domínio da língua e combinações insólitas, eis seus instrumentos". Menalton Braft
O inédito de Kafka, uma coletânea de contos editada pela Cosac Naify.

Para saber mais e ler trechos da obra, acesse:
[elmirdad.blogspot.com.br/2015/01/pilulas-o-inedito-de-kafka-de-mayrant.html]

Blog do Autor:
[nonleia.blogspot.com.br]

O caráter estético singular e universal das narrativas de Valêncio Xavier

[...] Valêncio Xavier, em O mez da grippe e outros livros, rompe com as bases estético-literárias tradicionais ao compor nos seus textos um horizonte distinto de tendências narrativas na ficção contemporânea brasileira.
[...]
As narrativas de Xavier inserem-se no período histórico-estético contemporâneo da literatura brasileira por suas qualidades estéticas. Trata-se de textos que encontram correspondência com as novas formas de narrar que vêm sendo experimentadas e cultivadas nos tempos hodiernos, assim como textos que procuram transgredir os novos desdobramentos culturais, e sempre em busca da criatividade artística. Quanto ao campo formal, Xavier, por meio da pluralidade de linguagens e de técnicas narrativas, busca formas de exceder a perspectiva clássica da página do livro, de modo a configurar uma poética que trabalha não apenas com a mensagem, mas com o próprio canal, por exemplo. Quanto ao aspecto temático, trata-se de uma literatura que torna tudo, desde o mais prosaico, digno de ser narrado, e sempre com um tratamento mediante o qual se podem depreender temas universais dos textos, isso porque as suas histórias revelam dramas humanos, “epidemias” universais e atemporais. Ao ler o livro, tem-se a sensação de estar assistindo pacientemente, à semelhança dos habitantes da Curitiba de 1918 diante da gripe espanhola, a uma “epidemia” de desvalorização e de banalização das relações humanas no contexto urbano. Valêncio Xavier, escritor cuja visibilidade na cena literária brasileira evidencia a existência e a soberania de diversas instâncias e de mecanismos mercadológicos e legislativos no processo de projeção do artista como sendo de valor e de importância, constrói uma escrita literária singular e ousada, o que pode gerar uma reação de desconforto e mesmo de frustração àqueles leitores acomodados com narrativas mais tradicionais, resolvidas pela relação de causa e efeito. Isso porque a sua literatura, ao expor a grotesca e misteriosa realidade do cotidiano em um instantâneo da vida, por meio da combinação de elementos ficcionais e não-ficcionais, em uma linguagem labiríntica e intersemiótica, sempre reserva um espaço à dúvida, configurando, assim, o aspecto emancipatório de suas narrativas e eternizando o movimento em busca de significações suscitadas por elas.

Lourenço Mutarelli fala neste episódio do "Livro de Cabeceira" a respeito da influência que o livro "O mez da grippe", de Valêncio Xavier, tem sobre sua própria obra.