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O escritor Evandro Affonso Ferreira fala sobre seus livros, entre os quais: "O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam":
A magistral trilogia de @AntônioTorres:
Sobre Essa terra:
“Essa terra não é a história de uma terra, mas do seu produto humano.” - Leonor Bassères, Tribuna da Imprensa
“Há magia na linguagem desse belo romance.” - César Leal, Diário de Pernambuco
“É a sua obra-prima.” - Ana Maria Machado, Jornal do Brasil
Sobre Pelo fundo da agulha :
“ Pelo fundo da agulha é um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.”- Ignácio de Loyola Brandão, Estado de S. Paulo
“Com Pelo fundo da agulha fecha-se o cerco da trilogia iniciada com Essa terra, de 1976, e seguida por O cachorro e o lobo, de 1997, marcando três tempos na obra de Antônio Torres e ainda três momentos distintos da história da ficção no país.” - Cláudia Nina, Revista Brasil / Brazil , Brown University
Transcorria janeiro em dia
ensolarado característico da época, antes das oito da manhã o navio Benjamim
Guimarães, primeira embarcação a se aproximar, atracou em Riopara trazendo uma
encomenda para Justino Jatobá, então, o prefeito.
Após descarregamento dos
caixotes contendo uma antena parabólica e acessórios, o comandante do navio,
sujeito corpulento, barba branca, de mãos enormes, feição acaboclada num rosto
que exibia sinais de severidade logo desmentida por suas maneiras mansas, deu a
conhecer às pessoas presentes aquilo que ele considerava a maior invenção
tecnológica do século XX. O artefato que tiraria Riopara do atraso e do
isolamento. A população da pequena vila iria se conectar ao resto do mundo logo
que a antena fosse instalada e tivesse o foco direcionado para a vastidão da
esfera celeste em busca de satélites.
Chiquinho do Jegue foi cedo ao
porto esperar o navio, para em seguida, transportar a antena até a casa de
Justino Jatobá no lombo de seu burrico, o jumento Tinhoso. Chiquinho puxava o
asno com a certeza de que levava modernidade, novos padrões culturais, enfim: a
civilização. Durante o caminho, seguido por uma multidão bastante
diversificada, todo orgulhoso, ia anunciando a boa-nova quando, de súbito, o
jegue cismou de empacar defronte ao adro da igreja matriz.
O transporte da parabólica
teria acontecido dentro da normalidade não fosse a atitude inesperada do jegue
que acabou transformando o traslado do equipamento num dos fatos mais insólitos
já vividos pela população. No meio do trajeto, grande confusão se estabeleceu
quando Tinhoso parou ao chegar diante da igreja. O beato João do Rosário, única
pessoa em Riopara contrariada com a chegada da antena, antevendo não se sabe o
quê, proferiu fanaticamente: “Esse troço é uma arte do capiroto, só vai
trazer devassidão, lascívia e muita safadeza!”, e, colérico, ameaçou
espancar o animal.
João do Rosário se irritou
ainda mais quando um grupo de rapazes e as lascivas moças do bordel de Maria
Xibiu Seco começaram a bater palmas para o animal, crentes em que o muar
desejava que padre Jesuíno benzesse a parabólica. A atitude dos rapazes e moças
enfureceu o beato, que bradou: “Tirem esse animal da calçada da Igreja! Aqui
é local santificado, lugar de veneração e respeito a Deus.” Era como se o
jegue Tinhoso carregasse nas costas todas as iniquidades, mazelas e
obscenidades do mundo.
Chiquinho não se conformava.
Gritava e assegurava que tinha o direito de ir e vir com seu jegue para onde
bem quisesse. Isso encolerizou ainda mais o beato, que de posse de um porrete,
atingiu as pernas do animal ameaçando aleijá-lo. O gesto intempestivo de João
do Rosário revoltou todas as pessoas paradas nas cercanias da igreja. Às
pressas, dois policiais plantonistas foram chamados para tentar resolver o
impasse do jegue. Um dos soldados queria obrigar Chiquinho a tirar o bicho do
local. Muito revoltado, Chiquinho disse: “Meu animal foi agredido! Exijo que
esse maldito beato seja preso imediatamente”.
Para aumentar ainda mais a
confusão, o impassível jegue começou a zurrar e se dirigir em direção às
escadas de acesso à porta principal da igreja. A cidadezinha se quedou perplexa
atraída por aquela celeuma. Formigava gente nas imediações do templo. Todo mundo
ansiava pelo desfecho daquele acontecimento raro. Os policiais queriam que
todos fossem embora, mudaram de ideia quando o endiabrado jumento, numa
investida espetacular, resolveu soltar peidos, subir, mijar e cagar nas
escadarias e invadir a igreja para susto e assombro daqueles que faziam suas
orações. Foram grandes o rebuliço e o alarido geral; pessoas saíram porta a
fora, desenfreadas, e uma senhora gritou: Valei-me! Nossa Senhora dos jumentos desembestados,
livrai esse animal dos espíritos malignos que o atormentam.
- “Vai todo o mundo agora
pra delegacia, inclusive o jegue”, – bradou o militar mais velho.
Na delegacia, após entrega da
parabólica em domicílio de Justino Jatobá, mais um entrave surgiu na hora
de apresentar o jegue ao delegado: Chiquinho empregou vários meios, fez de
tudo, mas não conseguiu fazer o sestroso jumento subir a rampa de acesso ao
pátio. Vigiado pelos policiais e populares, o animal acabou amarrado numa
árvore em frente ao prédio. Um boletim de ocorrência por maus tratos contra
animal foi lavrado e o jegue encaminhado para exames. Atestadas as
lesões, obrigado a arcar com as custas e condenado a prestar serviços
comunitários, meses depois, João do Rosário foi acusado de pedofilia; desta vez
encarcerado, enlouqueceu, enforcou-se.
A oração interrogativa estabelece um diálogo com o leitor e o convida a refletir sobre a centralidade do dinheiro, no mundo contemporâneo, valorizado mais do que saúde, paz, amor, nos votos de fim de ano, festa de grande valor simbólico. |
"No último réveillon, quantas pessoas desejaram dinheiro para você?
Você está só porque ninguém se interessa pelos seus problemas, pela sua solidão, pelo seu dinheiro que você não tem, pela sua solidão intransponível, pelas injustiças que vivem acontecendo na sua vida, na vida.
Você está só porque a imagem de uma criança toda queimada, toda suja de lama numa maca cheia de moscas voando ao redor, é apenas uma imagem na televisão, patrocinada por um banco que finge ser seu amigo, finge estar à sua disposição no momento em que você mais precisar dele, aquele banco legal, aquele banco amigão.
Você está só porque tem dinheiro.
Você está só porque não tem dinheiro.
Você está só por causa do dinheiro.
Só dinheiro.
Só."
(SANT'ANNA, André. O Brasil é bom. São Paulo: Cia. das Letras, 2014, p. 58) |
Repetida exaustivamente, a afirmação "você está só" atua como espinha dorsal do conto, que aborda a incontornável solidão do homem contemporâneo. Ao mesmo tempo, reforça a proximidade entre o narrador anônimo e o "você", também indefinido, imagem do leitor a quem o narrador se dirige.
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Ao longo desse parágrafo, aparece duas vezes repetida a palavra "solidão", uma delas, inclusive, qualificada pelo adjetivo "intransponível", o que a torna ainda mais dolorosa e inevitável.
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Nesse trecho, o pronome possessivo "seu" não remete à posse, mas ao contrário, à ausência de posse, já que se trata, contraditoriamente, do "seu dinheiro que você não tem".
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Inicialmente, a palavra "vida" está circunscrita ao indivíduo não nomeado a quem o narrador atribui "sua vida"; no entanto, no fim do período, amplia-se o seu significado e "vida" passa a englobar um sentido mais amplo e coletivo.
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O discurso publicitário - que é também incorporado na repetição persuasiva da afirmação "você está só" - é aqui referido de modo explícito, quando o conto expõe os bastidores do mundo da notícia, patrocinado pelo banco, ironicamente, qualificado como "legal" e "amigão", que apenas "finge", verbo repetido duas vezes, se interessar pela vida dos clientes.
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Nos parágrafos finais, a narrativa em prosa se aproxima da tessitura do poema. Mantém-se o uso da anáfora, com a repetição de "você está só", e variação apenas da segunda parte do sintagma, com pequenas variações: afirmação, no primeiro, negação no segundo e mudança do conectivo, no terceiro.
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Apaga-se o pronome "você" e acentua-se a exclusividade do dinheiro como único elemento importante no mundo, na vida, "só dinheiro", enfatizando o processo de reificação, típico de uma sociedade de consumo. Por fim, numa espécie de degradação, apaga-se a palavra "dinheiro" e resta apenas "só", indicando a circularidade da narrativa. A solidão é uma espécie de círculo do qual não podemos escapar? - indagamos, entre tristes e esperançosos.
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