ESCRITORES

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Parabólicas e Mandacarus - Autorretrato - Conto II


AUTORRETRATO


Uma teoria bizarra assegura que a escassez de cabelos na cabeça influi na quantidade do sono. Adormecido ou acordado, minha cabeça  e nariz apontam para os chapadões da caatinga nordestina, na linha do nada onde tudo se reparte em aura de mistério, em livusias, livros, ideias, pessoas e abstrações. Minha alma confirma tudo: tenho boca ávida pela vida e pela água do “Velho Chico”, meu coração sertanejo quer entranhar o mundo em mim enquanto meus olhos miram atentos e abarcam todas as paisagens do sertão profundo. 
Amamentado pela minha biblioteca, moro na estrada, caminho pelo mundo. Sem saber filosoficamente quem sou e nem por que vim, vou seguindo. Quando nasci, lá pelo ano 1957, trouxe comigo uma grande alegria para meus pais que até aquele momento não contabilizavam mais o feito, de após dez anos, ter mais um filho. Sob o olhar perplexo, interrogativo e desconfiado de familiares, amigos e vizinhos surgia um ser temporão no seio familiar dos Neves de Castro.
Fluviocaatingueiro, das barrancas do são-franciscano, cresci no seio leitoso da caatinga navegando em barcos ou montado em jumentos; descalço, livre e exalando do corpo aquele indefinível cheiro da juventude, entre mandacarus, veredas e plantações, tive os pés regulados para andar por esses caminhos e veredas ouvindo os sons de uma fauna alegre e bucólica; matuto, vivia absorto contando estrelas, nadando na terceira margem do rio, entregue a fantasias e devaneios.
Em Riopara, na adolescência, conheci o amor e as delícias do sexo, aprendi a fumar e a beber, matei aulas no Colégio para estripulias amorosas, fui apresentado a um anjo safado de grande sabedoria, autor de uma canção cuja letra dizia: Vai Luiz, ser torto na vida.
Passei um tempo pela terra do Menino da Porteira e o meu coração que até então era vadio, ficou barroco-mineiro. Subi e desci ladeiras da pátria Minas imaculada onde foram inventados o silêncio, a liberdade e a terceira margem do rio. Descobri que na vida existem mais hipóteses que teoremas. Supor é melhor que demonstrar e na dúvida mora a vontade de continuar a viver.
Depois deixei a memória, o patrimônio de séculos construído pelas mãos do homem, o silêncio das montanhas e a voz interna de minha alma na terra onde o oculto do mistério se escondeu. Calcei chinelos, peguei o trem, e vim pra cá onde as ruas ora são largas, ora estreitas, antissimétricas e calçadas de pedras polidas pisadas de pretos, os sons das sirenes são atabaques; padres, pastores e poetas são da noite, o vizinho que mora ao lado é Quincas Berro D’água, os malucos são beleza, as árvores são centenárias e sagradas, o cantar das aves é intrigante, a religião oficial, como bem disse o jornalista Fernando Vita, é eclética, bela e eficaz, mistura santo com comida, pipoca-branca com hóstia, encruzilhada com catedral e coruja-ebó com monsenhor; e o acarajé, especialidade magnífica da culinária afro-baiana, é o hambúrguer do povo.

     Em Salvador nasci pela segunda vez, meu coração bateu aflito. Mas logo que vi o mar, serenei, pois tudo que havia existido voltou subitamente, e volta sempre, quando vou caminhando pelo calçadão que vai do Porto da Barra ao Largo das Gordinhas em Ondina ou circundando as sinuosas curvas do enigmático Dique do Tororó embaixo das sombras sonoras de árvores centenárias.
Nesta terra de todos os santos nasceram Eliana e Luiza minhas filhas lindas. Juliano, meu filho, nasceu em Aracaju, cidade coirmã. Às mulheres que amei e com quem convivi devo muito do que sou naquilo que possa ter de virtuoso. Aí, o que foi e o que poderia vir a ser andam comigo, incluindo o sonho e a liberdade de um libertino a vaguear pelas virtuosas e belas ruas da Bahia.
Entusiasta da liberdade, não gosto que me deem ordens nem me digam o que devo fazer, por isso gosto tanto de viajar por esse mundo afora onde “ninguém dirige aquele que Deus extravia”.
Sou de Leão, anjo torto, um traquinas que não consegue contrariar o seu signo de baiano, de vagabundo iluminado da Latinoamérica, pois tenho a convicção de que morrerei, segundo a canção de Gilberto Gil e Capinan, de “amores, de susto, de bala ou vício” entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher.

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