“Toda língua tem esse negócio de ‘É pau, é pedra’, não é, Pasquale?”
Quando me deu a honra de participar do “Nossa Língua Portuguesa”, o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim fez essa pergunta-explicação ao mostrar de onde tirou o mote para iniciar “Águas de Março”. Rudimentos de civilização, “pau” e “pedra” são substantivos por excelência. “Só tem substantivo nessa letra, não é?”, emendou mestre Tom, que disse ter escrito o poema “num pedaço de papel de pão, na beira do rio”.
Leitor voraz de enciclopédias e dicionários, doutor em urubus (o texto que escreveu na contracapa do memorável disco “Urubu” é uma aula sobre eles, em particular sobre o jereba), confessamente apaixonado por questões linguísticas e literárias, Tom, com “Águas de Março”, legou aos professores de português um belo atalho para uma boa aula sobre uma das classes de palavras, a dos substantivos.
O que é o substantivo? Por que tem esse nome? Há alguma relação entre “substantivo” e “substância” ou “substancial”? Qualquer semelhança não é mera coincidência. O substantivo tem o nome que tem porque é sempre a substância, o núcleo de um grupo de palavras do qual faça parte. A substância (ou seja, o núcleo) de “mulher bonita” é “mulher” (substantivo) e não “bonita” (adjetivo). Pode-se dizer que, grosso modo, o substantivo nomeia a substância do planeta. A etimologia nos lembra que substantivo é “aquilo que está por baixo”, isto é, constitui a base de todas as propriedades e qualidades, não só materiais, mas também espirituais.
Seja do mundo real, seja do mundo imaginário, o que substancia o mundo pertence à classe dos substantivos: pau, pedra, fim, caminho, resto, toco, caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol, peroba, campo, nó, madeira, caingá, candeia, matita pereira, vento, tombo, ribanceira, garrafa, cana, mistério...
Num primeiro momento, pode-se pensar que a paisagem descrita em “Águas de Março” seja a natureza em estado bruto, primitivo. Substâncias do mundo industrial (“caco de vidro”, “carro”, “prego”, “viga”, “garrafa”), no entanto, deixam claras a presença e a ação do homem, num universo de que fazem parte o primitivo e o “moderno”, a lama e o carro, o céu e o chão, a vida e a morte, o concreto e o abstrato. O tom substantivo do texto (e do que nele é descrito) é tão intenso que, mesmo quando se adjetiva, predomina o substantivo, presente em locuções adjetivas: “de vidro”, “de cana”, “de vento”, “de atiradeira”, “da manhã”, “de março”.
“Águas de Março” ficou conhecida pela gravação de Elis Regina, de 1972, mas Tom a havia lançado no antológico "Matita Perê", de 71, em que contou com a preciosa parceria de Paulo César Pinheiro na letra da canção que intitula o disco, dedicado a Guimarães Rosa. E foi em Rosa que Tom buscou inspiração para reforçar com processos verbais (expressos no gerúndio, forma nominal) o tom substantivo de “Águas de Março”: “vento ventando”, “pingo pingando”, “chuva chovendo”. Existe algo mais substantivo do que vento ventando, do que chuva chovendo, do que pingo pingando?
Talvez valha a pena lembrar dois detalhes interessantes. O primeiro é curioso. Como se sabe, é normal o processo de substantivação de qualquer palavra da língua. Paradoxalmente, a palavra “substantivo” (logo ela!) pode funcionar como adjetivo (como ocorre em “o tom substantivo do texto”, por exemplo).
O segundo detalhe se refere ao substantivo “águas”: é o único que está no plural. E são justamente elas, as águas de março, que promovem uma verdadeira lavação, lavadura, e, terreno limpo, (re)instalam “a promessa de vida no teu coração”. O abstrato “promessa” (“ato de prometer”) está prontinho para se concretizar no coração de João, no de José e no nosso (por que não?).
PASQUALE CIPRO NETO em: PENSO; LOGO ESCREVO no site [TÔ SABENDO MAIS]
Um comentário:
Amo a música e a interpretação da Elis.
Gostei do aspecto lingístico que ela encerra.
Um bj
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