ESCRITORES

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Ladeiras, vielas & farrapos - Tom Correia


Tom Correia

Salvador ubíqua e nua

O livro encerra um rico mosaico de narrativas muito bem construídas. Elas se conectam de forma sutil, com uma arte caprichosa: ligam-se umas às outras na profundeza de que emergem, sem perder sua independência, o acabamento que as distingue. Cada uma delas parece refletir a estrutura do conjunto móvel, como uma sinfonia de mestre, sem sacrifício da singularidade dos diferentes movimentos. A gente pode deter-se num dos picos dessa cadeia e estudar-lhe o panorama sem que a surpresa nos abandone nunca, pois a paisagem se expande e se modifica a nossos olhos, pronta e envolver-nos a cada avanço com suas curvas inesperadas, insinuantes.
Outra imagem me ocorre, talvez mais exata para falar dessa composição: ela me sugere um labirinto de espelhos que refletem e transformam um único personagem, fazendo-o, porém reconhecível de forma inequívoca nas sucessivas metamorfoses, através das muitas máscaras que lhe empresta. O personagem onipresente que se desnuda na superfície ocelada desse abismo é a Cidade do Salvador. Ela se expõe aqui num striptease desaforado e lírico, brutal, patético, com furor carnavalesco e escandalosa sinceridade.
O espetáculo é a um tempo cruel e fascinante, rico de uma fantasia que nada oculta, antes desmascara, Uma ironia feroz anima o jogo de alegorias criativas que descobrem seu objeto ao distanciá-lo em aparência. (Falo aqui de "alegoria" no sentido em que o conceito foi renovado por Walter Benjamin; evoco o variável de que se valeram autores com Kafka, Chesterton, Cortázar, Lezama Lima). Essas alegorias multiplicam a figura única, seguidamente transformada de forma reveladora, no ritmo de uma dialética inventiva, que não hesita em face do paradoxo.
O resultado é um desnudamento. Cá está a cidade que se esforçam por ocultar seus celebrantes oficiais, seus políticos, seus publicitários e tartufos, seus exploradores, seus gigolôs. No estranho palco apocalíptico de Tom Correia ela aparece com toda crueza, exibindo farrapos e chagas, miséria e graça que nada extinguem. Na dança trôpega de suas ladeiras infernais, nos espasmos de suas vielas sórdidas, mostra-se um brilho inesperado que uma escrita ágil captura. A essa luz crua, profética e viva, revela-se a esquecida, escondida, incontrolável Salvador: a metrópole negra, pobre, torturada, trágica, fantástica, desgraçada, cômica, luminosa, suja e desvairada, uma radiante, frenética prisioneira de seus fantasmas, sempre tentando evadir-se com alucinados esplendores e sempre recaindo em feroz vertigem.
[...]
A dureza com que esculpe o retrato cruel da cidade amada não impede que Tom Correia faça uso de outros tons, não inibe a variedade de recursos expressivos, por vezes manipulados polifonicamente no extremo oposto do seu espectro poético: não estanca, por exemplo, o frescor e a ternura de que sua linguagem também é capaz, nem tolhe seu bom manejo da paleta lírica, com bem mostram os contos "Rolimãs" e "Água Brusca". Poucos ficcionistas reúnem essas habilidades.
Falta-me aqui espaço para seguir explorando toda a riqueza do livro de Tom Correia. Encerro com uma alegre constatação: temos um escritor baiano perfeitamente capaz de ombrear com os maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. Tomara que sua terra não demore a dar-lhe esse reconhecimento. 
Por Ordep Serra - Escritor e Antropólogo


Minha história: Tom Correia

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