ESCRITORES

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Parabólicas e Mandacarus - Onde eu nasci passa um rio - Conto I

ONDE EU NASCI PASSA UM RIO

Onde eu nasci passa um rio

Que passa no igual sem fim

Igual sem fim minha terra

Passava dentro de mim

CAETANO VELOSO

 





Vou a Riopara, me disseram que ela vai desaparecer. Vão represar o rio no Salto de Santana do Sobrado, meu pai me disse em sua última carta.

O ônibus descia a estreita escarpa da Serra das Araras Azuis quando descortinou na paisagem, por entre todas as cores que o sol do entardecer concede, aquilo que eu sabia estar sendo visto pela última vez: a natureza que servia de berço a Riopara aprazia aos olhos e cativava o espírito pela intensidade da beleza; a vista do entorno espantava qualquer cansaço; límpidas praias temporárias, lagoas, baixios, ilhas, barcos e velas na direção do rio; rochedos, montes e serras no rumo da caatinga. Sobressaía nessa geografia uma abóbada celeste que sempre esteve mais próxima da terra do que em qualquer outro lugar e a água do rio lambendo cariciosa o grande lábio da margem onde a cidadezinha subsistia vivendo seus últimos instantes.

- Vamos até o morro do cruzeiro; de lá do alto, dar pra gente ver tudo.

Meu pai chamou fitando meu rosto com olhar transcendente de quem adivinhava o revés que estava por vir.

- É bom irmos logo!, em pouco tempo a água começa a cobrir o cais.

 Após alertar, ele se fez silêncio durante todo o caminho e apenas suas firmes passadas faziam com que eu não me sentisse só; em nossa companhia eram dezenas agora e pairava no ar o prenúncio trágico de que algo ia ter fim e alguma coisa indeterminada ia começar quando as águas irromperam pelas aberturas da balaustrada do cais.

Do alto do antigo cruzeiro, sobre a parte que ainda restava da bela base maciça de alvenaria, eu e meu pai, envoltos em semicírculo por uma densidade humana, contemplávamos com absoluta consternação o rio avançar sobre a urbe despovoada em vaga fluvial volumosa, e numa enchente diluviana, submergir vastas extensões de terra, vilarejos, veredas, plantações; templos, terreiros e antigos casarões; praças, ruas, estradas e o sepulcro das almas que nos eram familiares, e que, segundo os olhos videntes de meu pai, a água afogava até o espírito dos mortos, e estes julgando que já fosse o juízo final, saíam de seus túmulos para andar sobre as águas à procura dos caminhos que se bifurcam para o inferno, purgatório ou direto ao paraíso.

Março, manhã, mormaço no vale são-franciscano; intensa luz solar projetava lume cintilante sobre a superfície das águas quando chegou o dia de Riopara partir em derradeira viagem para imergir no fluxo universal do tempo. Levou tudo consigo: singularidade, crenças, histórias e reminiscências; sua essência fluviocaatingueira, sonhos, pesadelos e um século e meio de pecados cometidos. Nas últimas horas daquele apocalipse adiantado no tempo submergiu com seu vistoso casario, não adiantou a força e a fúria de seus deuses, totens, anjos e demônios; desapareceu com sua concepção do mundo, sua ancestralidade, seu modo de menina, suas idiossincrasias, seus imponderáveis e sua felicidade libertina.

Introspectivo, olhos lacrimosos por ter sido desterrado, como se quisesse afugentar sentimentos dolorosos, meu pai discursou: as cidades, do mesmo modo que os seres vivos que se originam de minúsculas células, nascem de diminutos vilarejos anteriores, reproduzem-se, desenvolvem-se, conurbam-se. Há aquelas que eventualmente morrem. Umas são de índole agreste, selvagens, violentas, cheiram mal, confundem e suicidam devagarinho seus habitantes; há outras que, de tão aprazíveis, tudo à sua volta iluminam e suavizam, parecem avencas altivas e delicadas. Entre as derradeiras, desde sempre, esteve Riopara.

No prelúdio da idade, sem ter ainda conhecido a mutualidade do sexo ou de um amor maior, sem ter feito qualquer coisa de memorável e desolado com a destruição, de súbito senti meu corpo a mover-se sob as águas noutra forma de vida, revivendo num Salminus brevidens - peixe tubarana, piraju, peixe dourado. E naquele instante em que reiniciava vivência com outra aparência física, um cheiro forte de terra seca desvirginada pelas águas da cheia impregnou a atmosfera. Talvez faltasse apenas uma hora, talvez menos, até Riopara ficar submersa e sumir no horizonte seus últimos vestígios.

O desalento daquele dia ficou para sempre marcado em mim vendo Riopara jazer imersa sob uma planície líquida na vastidão de um lago antrópico; aves itinerantes cruzavam o céu em arribação procurando pouso noutras paragens; por baixo d'água, a vida inteira daquele lugar repousava na memória, no aroma e no remanso das águas do “Velho Chico”.

Antes que o sol desse dia decaísse, com a existência preservada em recente corpo físico, sumi no seio do rio em busca dos cardumes dourados para recomeçar outra vida, esse imenso mistério.


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